Parece que sangra, vermelho sangue.
Já foi cenário de guerra entre dois irmãos,
Fronteira imaginária, Brasil e Paraguai, duas culturas que se misturam e insistem em não se misturar.
Terra de poeira vermelha das carreiras, das boiadas em comitiva, dos bailes na casa de taipa da vó Maria e do vô Bininho.
Cadê a lagoa? Orquestra sinfônica de sapos e rãs?
Cadê nosso cerrado?
Tão belo com florestas nativas: guavira, curupaí, ariticum, ipê...
Lembro-me do tempo em que a vó Maria e minha mãe lavavam roupas no Córrego Jogui.
Trouxas e trouxas, enquanto eu e minhas irmãs nadavámos no riacho de águas claras. O Jogui.
De vez em quando elas paravam de sussurrar e com um grito, um aviso.
- Cuidado, vocês podem escorregar crianças.
Paravamos de rir por um segundo, depois aquele éco de aviso ía desaparecendo e continuávamos a brincar.
Em agosto, que ventania, as tias diziam.
- Cuidado que é mês de cachorro louco!
- Cuidado com o tio Adão, ele vira lobisomem.
Eu acreditava, pois o via passar com um saco cheio de ossos nas costas, com um jeito de andar esquisito, meio perneta, mal sabia eu, que a geléia de mocotó que eu adorava proviera daquela cena bizarra.
Lembro-me da minha mãe com as suas irmãs saindo para a colheita de algodão para juntar uns mirréis extras para comprar tecidos na loja da Dona Verinha, na cidade.
Era um trabalho feito com amor, pensando depois nos vestidos lindos que teriam no final do ano.
Enquanto isso, eu e minhas irmãs passavámos o dia abaixo de uma árvore cuidando a comida para que as formigas e outros bichos não devorassem tudo. O que mais me agoniava eram aquelas lagartas listradas por toda parte.
O tempo passava devagar. Eu via as árvores crescendo junto comigo, as vezes parece até que já vive uns duzentos anos, será?
No final do ano era uma festa só, já em outubro a vó começava a falar que as visitas vinham chegando, e como demorava!
Os bem-te-vis não paravam de cantar, o pica-pau tinha até nome e as seriemas só me deixavam mais triste com seu cantar tão melancólico.
De noite que escuridão!
Eu não tinha medo, gostava do perigo, daquela sensação de que algo íncrivelmente extraordinário iria acontecer. Gostava de ouvir o cavalo correndo fazendo uns barulhos estranhos, quem não conhecia ficava assustado com tantos sons vindo da noite...
De manhã tudo era alegria, o galo acordava a todos de madrugada, o resto da bicharada parecia estar morrendo de fome, o dia parecia ter umas 72h no mínimo...
Quando chegavam as férias a casa da vó ficava cheia, cheia de visitas, de cores, de vozes e de alegria, felizes, as risadas podiam ser ouvidas de longe, eu nem podia dormir lá, mas não ficava triste por isso, implorava para minha mãe e ela não deixava, falava que eu dormia lá o ano inteiro e que não havia mais espaço. Embora eu soubesse que havia, e depois para mim não haveria tanta graça em dormir depois que todos íriam embora... as férias eram curtas logo voltávamos a mesmice da qual hoje sinto muita saudade.
Terra vermelha, Colônia Bom Dia, que nome mais lindo!
Lá fica o sítio Bom Dia bem ao lado a fazenda Vaca Branca, graças ao fantasma da vaca que morreu no parto.
Falando em fantasmas nossas casas eram rodeadas por cemitérios, túmulos. Eu e minhas primas roubavamos os vestidos que enfeitavam as cruzes para fazer roupas de boneca!
O pior dos fantasmas eram os vivos...
Meu vô Bininho gostava de uma viola, todo dia no final da tarde, ele lá pelas quatro da tarde, tomava banho, colocava uma calça, uma camisa e chinelos havaianas, pedia para a vó Maria preparar o chimarrão para esperar o seu compadre, seu Laucídio, que chegava todo alinhado à cavalo com seu chapéu Panamá que ganhara do seu filho médico, e os dois colocavam duas cadeiras uma de frente para outra e lá ficavam tocando até escurecer. Com ou sem platéia, assim era todo sagrado dia.
Aindo hoje quando sonho, viajo flutuando e fico vendo tudo do alto, ouvindo tudo ao mesmo tempo, e o tempo continua a não passar por lá!
(Heretoyama)